A CRÔNICA DA SEMANA de Carlito Lima

RAPADURA, OURO NORDESTINO

Carlito Lima – Escritor

Na Escola Preparatória de Cadetes de Fortaleza aprendi a ser adulto aos 16 anos com a vida espartana de disciplina e ordem, cuja maior glória era conseguida na banca de estudo das salas de aulas. Entramos apenas 77 jovens vindos de toda parte do Brasil, era início do longínquo ano de 1956. Adaptação difícil para um menino de vida livre, leve e solta na praia da Avenida. O maior enfrentamento foi o ensino rígido, com matérias básicas como: português, aritmética, álgebra, geometria, trigonometria, inglês e outras matérias curriculares, além da instrução militar e educação física. Tinha de estudar muito, só passava quem soubesse. Não havia cola (o professor entregava a prova, saía da sala, só retornava para recolher na hora determinada, ninguém colava, era parte do nosso Código de Honra, não escrito). O dia do cadete estudante iniciava às seis horas da manhã com o toque da alvorada, imediatamente todos faziam a higiene pessoal, arrumavam as camas, limpavam banheiros e privadas. Vestiam a farda, ficavam prontos para mais um dia de estudo e instruções que só terminava com o toque de silêncio pelo corneteiro às 22 horas.

Havia momentos de lazer, principalmente nos fins de semana. Sem pai, nem mãe, nem irmãos, os colegas tornaram-se nossa nova família. Uma amizade fortalecida entre os irmãos de armas que conviveram juntos por seis anos, incluindo a Academia Militar das Agulhas Negras, conseguimos o objetivo maior: ser oficial do Exército Brasileiro. Essa irmandade entre cadetes da mesma turma é indissolúvel e respeitosa. Alguns colegas deixaram a carreira pelo meio, fui um deles, deixei a carreira militar como capitão. Porém, a maioria continuou com muito esforço e estudo cursando a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, Estado Maior, Escola Superior de Guerra, entre inúmeros cursos. Difícil é chegar a general, dos 77 colegas de 1956 apenas dois galgaram ao posto de general.

Quando termina o curso da Academia Militar das Agulhas Negras os novos oficiais são distribuídos para servir nos mais diversos e longínquo locais do Brasil: Cucuí na Amazônia, Cruz Alta, Cuiabá, e outras cidades melhores e piores, dependendo da classificação. Eu fui servir no 19º BC em Salvador.

O tempo passou, os colegas dispersaram, até que em 1994 o General Rômulo Bini, comandante da guarnição de Natal resolveu organizar um encontro de nossa turma. A partir daquele ano, essas reuniões tornaram-se constantes trazendo alegria e muitas recordações, brincadeiras, passamos a ser cadetes novamente. Este ano haveria uma reunião em Maceió dos OITENTÕES, a maioria daqueles meninos de 1956 completa 80 anos em 2020, mas a pandemia não deixou, ficou adiada para 2021.

Foi numa dessas reuniões que Rocha, aluno 108, laureado primeiro de turma, Porta-Bandeira da Escola Preparatória, contou-me a história da bomba. Confirmada pelo coronel Wanderley, o maior goleiro que passou pela Academia Militar.

Wanderley, paulista de Lorena, foi um dos colegas da Escola de Fortaleza. No tempo de Ceará ele apaixonou-se pela comida nordestina: carne de sol, peixe frito, frutas regionais, mangaba, pinha, e principalmente a rapadura.

No final dos anos 60, eram capitães. Rocha de Engenharia servia na Fabrica de Material Bélico em Piquete e Wanderley de Infantaria, servia no 5º RI de Lorena, cidades próximas. O fato se deu na época de repressão e terrorismo em alta escala, principalmente em São Paulo, onde aconteceram vários ataques terroristas a quartéis do Exército e o caso da fuga do Capitão Lamarca, nosso contemporâneo na AMAN.

Rocha depois de uma viagem de férias ao Jati no Ceará, onde mora, trouxe, como sempre, deliciosas rapaduras para o amigo Wanderley.

Era um dia de quarta-feira à tarde, não havia expediente no 5º RI. Rocha, apressado, parou o carro em frente ao quartel, chamou um soldado e entregou-lhe o pacote de rapaduras embrulhadas em palha de milho, envolta em papel de jornal, pediu para entregar ao Capitão Wanderley. Deu partida no carro rumo a Piquete.

Nesse momento o tenente, oficial de dia observava o movimento pela janela, percebeu quando o soldado recebeu o pacote. O tenente saiu da sala correndo, ordenou ao soldado colocar o embrulho no chão do pátio, mandou tocar alarme geral e gritava: Cuidado é uma bomba!

Soldados que estavam dentro do quartel, tomaram posições estratégicas, atrás de colunas e paredes, vigiando, ao longe, a ”bomba”, imóvel, soberba no meio do pátio.

O quarteirão foi interditado, o transito desviado, ninguém podia se aproximar do quartel. Logo a mídia tomou conhecimento, encheu os prédios vizinhos de câmara de televisão de onde filmavam a bomba no meio do pátio, esperando especialista de São Paulo para desativá-la.

Naquela tarde, o Capitão Wanderley vinha de uma pescaria e notou um movimento estranho, se dirigiu ao quartel. Os soldados contaram o que estava ocorrendo ao capitão. Wanderley entrou no quartel, ao olhar o pacote da bomba, reconheceu os abençoados pacotes que o Capitão Rocha lhe trazia. Contou sua versão sobre a rapadura ao tenente, que nessa altura não admitia outra hipótese, era uma bomba.

Os soldados abrigados por trás das colunas ficaram apavorados com a aproximação do capitão em direção ao pacote. Wanderley nem ligou os gritos de atenção, só pensava na deliciosa rapadura. A expectativa e o silêncio tomaram conta dentro e fora do quartel nos edifícios. Wanderley chegou junto, acocorou-se segurando o pacote, foi abrindo pelos lados, tirou as palhas de bananeiras até aparecer algumas barras douradas de rapadura, o ouro nordestino. Com os dedos quebrou um pedaço, levou-o a boca, saiu mastigando, andando devagar, com o pacote no sovaco, deixando a plateia pasmada e a imprensa frustrada.

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