CRÔNICA DA SEMANA de Carlito Lima “1º DE ABRIL DE 1964”

Carlito Lima é escritor alagoano, engenheiro civil, produtor cultural e boémio

1º DE ABRIL DE 1964

Acordei-me com o som cadenciado do toque de alvorada pelo corneteiro do quartel. Eu era tenente do Exército Brasileiro servia na 2ª Companhia de Guardas, tropa de elite do IV Exército sediada no centro da cidade. Soldados altamente treinados contra distúrbios e guerrilha urbana. Uma luminosa manhã acordava a bela histórica cidade do Recife. A Companhia estava de prontidão há mais de uma semana devido aos acontecimentos políticos da época. Um processo de desgaste do Governo Federal se espalhou sobre a Nação. O presidente João Goulart era ambíguo, acendia uma vela a Deus outra ao Diabo (como diria Julião em uma entrevista, tempos depois). O que sustentava Jango era um suposto esquema militar. O General Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército (Nordeste), jurou de que defenderia a legalidade ao lado do Presidente. Quando a conjuntura mudou, ele também mudou. A situação política ficou mais nebulosa depois do grande comício das reformas em frente ao Ministério do Exército, dia 13 de março, com discursos provocativos às Forças Armadas. Jango, foi inábil, estava cutucando a onça com vara curta.

Naquela bela manhã, logo depois da formatura matinal da tropa, o capitão Luís Henrique Maia reuniu os cinco tenentes comandantes de pelotão e informou as notícias já confirmadas. A tropa do general Mourão Filho de Minas Gerais havia se rebelado e estava em marcha ao Rio de Janeiro para unir-se ao I Exército, e depor o presidente João Goulart. O objetivo da rebelião militar era restabelecer a ordem no país e garantir a eleição para presidente em 1965. O capitão mandou preparar o pelotão para um possível enfrentamento, entrar em combate urbano a qualquer momento, tendo necessidade.

Eu era um jovem que amava os Beatles, os Rolling Stones, a Bossa Nova, a Boemia, pensava em mil coisas, retornei ao alojamento do pelotão. Fiquei especulando o que haveria de ser. As notícias do rádio, televisão, de boca a boca e os boatos previam até guerra civil. O presidente João Goulart estava para dar o golpe, não haveria eleição em 1965 e seria implantado um Estado Socialista-Sindicalista, eram os comentários mais fortes.

Eu encontrava-me ainda em devaneios, quando o comandante me chamou, fui ao seu encontro no gabinete. Ele olhou nos meus olhos e deu-me as primeiras ordens:

– “Tenente a Revolução foi deflagrada em todo Brasil, chegou a nossa hora. Escolhi seu pelotão para primeira missão, talvez um batismo de fogo. Está havendo uma manifestação em frente ao Sindicado dos Bancários. A missão do Pelotão é dissolver esses militantes, confio no seu bom senso, por isso o escolhi”.

Coloquei o pelotão em forma, passei em revista os soldados, o armamento e equipamento, fiz uma preleção sobre a missão, deixei bem esclarecido, tiro só com minha ordem. O Sindicato não era longe, o Pelotão tomou a Rua do Príncipe em marcha. A batida uníssona do coturno no calçamento fazia um barulho assustador. Enquanto aqueles 44 soldados bem armados e equipados avançavam, eu percebia a movimentação nas ruas: mães colocando meninos para dentro das casas, pedestres entravam em seus lares. De cima dos prédios ouvi alguns aplausos, como também algumas vaias, era o povo dividido. O Pelotão avançava, eu continha a emoção, lembrava as informações, os boatos, os rumores que os sindicalistas, os camponeses, os homens que o governador Arraes apoiava, tinham sido treinados em guerrilha em Cuba e possuíam armamentos tchecos modernos.

De repente, mais emoção, avistei ao longe a multidão, em torno de 400 manifestantes. Tive de controlar um velho sargento, auxiliar, que suplicava dar um tiro para o alto, a fim de dispersar a multidão. Mandei o sargento se aquietar, lembrando que comando era exclusivo meu. Evitar uma reação por parte dos manifestantes e provocar numa carnificina de balas dos dois lados. O pelotão se aproximava cada vez mais, já dava para ver as fisionomias dos manifestantes, me preparava para dialogar, se possível. Enquanto o sargento, junto a mim, insistia em atirar, eu esbravejei em sua cara: Não!

Naquele instante dei voz de comando ao Pelotão: – “Acelerado marche!” Os soldados iniciaram a avançar em acelerado (correndo curto). De repente tive o maior alívio e alegria de minha vida ao perceber a multidão se dispersando em todas as direções.

Invadimos o sindicato a “manus militaris”. Ficaram apenas três sindicalistas. Pedi para que eles deixassem o prédio ou teria que levá-los presos, era a ordem. Apenas um sindicalista, barbudo, corajoso, magro, me encarou: -“Só saio morto ou preso”. Dei a ordem “Então têje preso, não vou lhe matar”. Mandei lacrar todos os móveis, deixei cinco soldados guarnecendo o sindicato. Retornei com o resto do pelotão para Avenida Visconde de Suassuna, sede da Cia de Guardas.

Durante o percurso, o pelotão marchava em duas colunas, e o barbudo, preso, caminhando no meio da tropa.

Encostei-me e cochichei no seu ouvido uma mentira assustadora: -“Estão matando tudo que é comunista, quando você chegar ao quartel vai ser fuzilado. Vou lhe dar uma chance, na próxima esquina lhe empurro e você se manda, corra”. Ao chegar mais perto da esquina, o barbudo olhou para trás, encarou-me com olhar suplicante. Aproximei-me, segurei-o pela camisa, puxei-o pelo braço e o empurrei. Ele disparou, escafedeu-se na primeira rua. No quartel fiz um relatório verbal ao Comandante. Ainda no 1º do abril, meu pelotão teve outras missões: Ocupou a sede dos Correios, patrulhou a cidade do Recife. À noite, cansado, dormi pensando no dever cumprido, em ter contribuído para garantir da ordem e a paz, a democracia e as eleições presidenciais de 1965. Ninguém, nenhum cientista político, nenhum profeta, nenhum futurólogo, acreditaria que aquele dia era o primeiro de uma ditadura de 21 anos.

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