CRÔNICA DA SEMANA de Carlito Lima “DONA MARIA JARDIM”
DONA MARIA JARDIM
Dona Maria Jardim é uma das figuras inesquecíveis de nossa infância na Praia da Avenida da Paz. Matriarca da família Jardim, gente trabalhadora, decente, desde século passado contribui com suor, inteligência e cidadania à boniteza da cidade colorindo-a com as tintas das Casas Jardim.
A Praia da Avenida da Paz era nosso ponto de apoio de brincadeiras, nossa praia, nossa vida. Pela manhã, quando não havia colégio, era imperdível jogar futebol na praia, puxar as redes com os pescadores, ou nadar naquele marzão que não tem tamanho, retornando com os botos mergulhando ao nosso redor.
Depois do almoço, havia opções de brincadeiras. Uma delas era jogar futebol de botão na casa da Família Jardim. Quando algum de nós, meninos da Avenida, gritava na porta da mureta do jardim, Dona Maria mandava prender o “Yumbo”, cachorro pastor alemão, brabo, nunca simpatizou com as caras das visitas e dos amigos de Luizito, Lizardo, Mário e Lizandro. Com razão, fazíamos uma razoável bagunça naquele casarão alegre, cheio de gente.
Logo ao entrar na casa, à esquerda da sala, havia um campo de futebol de botão em cima de dois cavaletes altamente nivelados, o melhor de Maceió. As traves com redes de filó eram um primor de feitura, pareciam traves dos estádios de futebol. A bola feita de cordão trançado amarrado e cortado à tesoura, arredondada pelas beiras. Bola impecavelmente redonda rolava uma maravilha, uma vantagem para quem sabia jogar.
Eram campeonatos seguidos, nossos times de botão geralmente tinham nomes dos clubes do Rio de Janeiro. Fazíamos a tabela dos jogos em papel almaço pautado, anotando a classificação por pontos perdidos, sem esquecer artilheiros e goleiros vazados.
Ao longo do campeonato havia briga e discussão. Ao terminar, o vencedor comemorava. No mesmo dia iniciava outro campeonato. Assim os meninos invadiam a casa de Dona Maria na Avenida para perturbar a ordem reinante, Dona Maria, paciente, tratava os amigos de seus filhos como se fossem dela.
Quando havia jogo noturno, quando Seu Luiz Jardim, o patriarca, estava em casa, ouvíamos suas músicas clássicas prediletas. Assim que terminava o jantar, Seu Luiz colocava seus discos pretos, selos vermelhos de 78 rpm na vitrola. Eram sempre cantores líricos como Caruso entoando canções napolitanas, óperas. Meu bom gosto musical é fruto das audições involuntárias de músicas clássicas e eruditas que Seu Luiz Jardim nos fazia ouvirmos.
Família intelectual e política. Certa tarde um senhor amigo chegou à casa, falando alto, dizendo que havia morrido um grande canalha, outro açougueiro da humanidade, Josef Stalin, parceiro de Hitler no genocídio mundial. Houve uma tremenda discussão entre os adultos. Nós meninos nem sabíamos o papel de Stalin no mundo, o que nos preocupava era nossos botões devidamente encerados, deslizando na mesa, sutilmente resvalados com a ponta de um pente fino, controlando a bola, fazendo gols. Nessa noite ao chegar à minha casa, fui consultar no dicionário o significado de genocídio. E ouvi um pouco o rádio que dava notícias da morte de Stalin.
A casa da família Jardim era enorme, da Avenida da Paz à Rua Silvério Jorge, alguns quartos na frente e um segundo andar onde tinham outros quartos. Uma vasta cozinha, salas e um quintal enorme.
Por alguns anos foi vizinho da família Jardim o deputado, depois prefeito, coronel Lucena Maranhão. Homem conhecido por sua coragem no sertão, perseguidor implacável de Lampião. O Coronel Lucena criava uma enorme cobra jiboia no fundo do seu quintal em um viveiro feito com um caixote de madeira e tela. A meninada adorava ver e perturbar aquela cobra, ela ficava irada, braba dentro do viveiro quando nós assoviávamos ou quando ela estava com fome. Se havia um rato sendo digerido no seu estomago, a cobra não ligava para a algazarra, as cutucadas, os assovios dos meninos.
O “secretário” do coronel proibia a meninada brincar com a cobra. Entretanto, éramos meninos livres, não obedecíamos aos nossos pais, avalie a um desconhecido. Esse “secretário” de nome Severino dava medo, contavam uma lenda de ele ter sido cangaceiro. Certa vez foi preso pela volante do Coronel. Mandaram os quatro presos cavarem suas próprias covas, três deles cavaram, Severino se negou a cavar. Com esse impasse inesperado, o sargento comandante do pelotão dirigiu-se ao quartel de Santana do Ipanema para pedir orientação ao Coronel Lucena. Ele próprio foi onde estavam os prisioneiros, ordenou gesticulando que o cangaceiro cavasse sua cova. Severino encarou o coronel, respondeu que não cavava agora, nem depois, numa coragem que surpreendeu. O coronel mandou o sargento levar o cangaceiro ao quartel, queria assuntar com o preso. Resultado, Severino tornou-se um leal homem de confiança, o guarda-costas predileto do Coronel. Assim nos contavam essa história. Quando aparecia Severino, nós fugíamos com medo e entrávamos correndo pelas portas dos fundos da casa de Dona Maria Jardim que nos acolhia. Aquela casa era o refúgio dos meninos, maloqueiros da Avenida da Avenida da Paz.